Estudando o “Código penal da vida futura”
Leonardo Marmo Moreira*
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Resumo
No capítulo sétimo da primeira parte de O céu e o inferno, Allan Kardec desenvolve um notável esforço de síntese para apresentar uma visão clara e bastante abrangente da situação espiritual do Espírito desencarnado, sobretudo após o desfecho de uma determinada experiência reencarnatória. Este admirável resumo é chamado pelo Codificador do Espiritismo de “Código penal da vida futura”. No presente artigo, selecionamos e comentamos alguns extratos referentes aos 33 tópicos do Código, a fim de apresentar um estudo inicial do tema e suas implica ções doutrinárias em diversos campos do Espiritismo.
Palavras-chave
Expiação; Lei de Causa e Efeito; Lei do Progresso; O céu e o inferno; vida Além-Túmulo.
Introdução
O “Código penal da vida futura”, inserto no capítulo VII – As penas futuras segun do o Espiritismo da primeira parte – Doutrina de O céu e o inferno [Kardec, 2022b], representa, na opinião de muitos confrades, um dos textos mais brilhantes da Codificação Kardequiana. Informativo, profundo e didático são adjetivos comuns para a caracterização deste material. Visando facilitar um estudo introdutório ao Código, elaboramos algumas reflexões sobre os seus 33 tópicos, destacando trechos dos respectivos itens.
Comentando extratos do Código
1º) “[…] O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza”.
Tal afirmativa alerta-nos para uma avaliação mais crítica a respeito de nossos próprios esforços na ação do bem. Não basta fazer o bem, mas é fundamental tornar-se bom ao fazer o bem.
2º) “A completa felicidade prende-se à perfeição, isto é, à purificação completa do Espírito. […] toda perfeição adquirida é fonte de gozo e atenuante de sofrimentos”.
Kardec estabelece que a in tensidade de felicidade usufruí da é proporcional ao nível de elevação espiritual alcançado. Cada desenvolvimento acentua o estado de plenitude íntima do ser espiritual, tal como assevera Emmanuel em Palavras de vida eterna: todo esforço de hoje, é uma facilidade a sorrir amanhã [Xavier, 2024, cap. 90 – Em constante renovação].
3º) “A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem três ou quatro […]”.
Kardec, portanto, correlaciona o nível de “enfermidade espiritual” com o número/ grau de “comorbidades” apresentado pelo Espírito doente. Obviamente, as imperfeições manifestam-se com intensidades variadas de indivíduo para indivíduo, mas, seja com relação ao número de falhas ou quanto à intensidade de tais manifestações, há sempre uma proporcionalidade entre evolução espiritual e felicidade, principalmente quando o Espírito se encontra na condição de desencarnado.
4º) “Em virtude da Lei do Progresso que dá a toda alma a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta, como de despojar-se do que tem de mau, conforme o esforço e vontade próprios, temos que o futuro é aberto a todas as criaturas […]”.
A Lei do Progresso, abrangendo as vidas sucessivas, não só demonstra a Misericórdia e a Sabedoria de Deus como dá sentido a todos os percalços e lutas da vida física.
5º) “O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu igualmente onde houver almas felizes”.
Kardec ressalta que “céu” e “inferno” são condições basicamente individuais, mas que podem adquirir aspectos coletivos e regionais a partir da reunião de Espíritos afins. Por tanto, trata-se de informação muito útil para a compreensão das regiões espirituais inferio res relatadas em várias obras subsidiárias do Espiritismo.
6º) “[…] Não fazer o bem quando podemos é, portanto, o resultado de uma imperfeição […]”.
Não fazer o bem quando é possível fazê-lo denota algum tipo de limitação, tais como ausência de perspicácia e/ou capacidade de organização, egocentrismo, preguiça etc.
7º) “O Espírito sofre pelo mal que fez, de maneira que, sendo a sua atenção constantemente dirigida para as consequências desse mal, melhor compreende os seus inconvenientes e trata de corrigir-se”.
À medida que o Espírito desenvolve sua capacidade de observação da realidade, tende a perceber com mais clareza as relações de causa e efeito existentes nas ações que desenvolve, favorecendo seu processo de autocorreção.
8º) “Sendo infinita a Justiça de Deus, o bem e o mal são rigorosamente considerados, não havendo uma só ação, um só pensamento mau que não tenha consequências fatais […]”.
Somos herdeiros de nós mesmos, o que vale tanto para o mérito do bem praticado como para o demérito da maldade perpetrada. Portanto, a situação espiritual não deixa de representar um somatório de todas as ações boas e más desenvolvidas pelo Espírito. Vale lembrar do Evangelho de Mateus (5:26): “Em verdade te digo que, de maneira nenhuma, sairás dali, enquanto não pagares o último ceitil”.
9º) “[…] todas as existências são solidárias entre si. Aquele que se quita numa existência não terá necessidade de pagar segunda vez”.
A solidariedade entre as reencarnações apresenta características educativas, sugerindo ao Espírito imortal, direta e indiretamente, que reforce e amplie experiências positivas e não reincida em vivências negativas.
10º) “O Espírito sofre, quer no mundo corporal, quer no espiritual, a consequência das suas imperfeições […]”.
Seja como Espírito desencarnado ou como Espírito encarnado, o ser enfrenta seus próprios defeitos e/ou limitações a todo o tempo. Kardec destaca que pelo tipo de prova na vida física pode-se in ferir os principais erros da vida anterior e os problemas intelecto-morais que ainda carregamos conosco.
11º) “A expiação varia se gundo a natureza e gravidade da falta, podendo, portanto, a mesma falta determinar expiações diversas, conforme as circunstâncias, atenuantes ou agravantes, em que for cometida”.
Tal como na “Justiça dos homens”, o tipo de falta e a maneira pela qual ela foi cometida, assim como contextos atenuantes ou agravantes, são considerados na definição do processo expiatório. Neste contexto, O livro dos espíritos já destaca a relevância da intenção junto à ação encetada.
Importante acrescentar que uma falha considerada relativamente aceitável para um Espírito de evolução mediana pode ser tida como extrema mente dolorosa e lamentável para um Espírito de maior evolução.
12º) “Não há regra absoluta nem uniforme quanto à natureza e duração do castigo […]”.
As circunstâncias associadas à falta, assim como o nível evolutivo do agente, influenciam diretamente no grau de responsabilidade associado a tal equívoco.
13º) “A duração do castigo depende da melhoria do Espírito culpado […]”.
O objetivo de toda experiência é a evolução do Espírito e, por isso, “toda expiação pode ser considerada uma prova…”, uma vez que visa à atenuação/supressão do defeito e/ ou ao desenvolvimento da virtude correspondente (oposta) a este defeito.
14º e 15º) “Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não lobrigarem o ter mo da provação, acreditando-a eterna”.
Esta realidade ajuda a entender o porquê de muitos Espíritos desencarnados ainda acreditarem no chamado “inferno eterno”. Tal constatação também ressalta, indiretamente, a importância da qualidade das informações divulgadas pelos expositores espiritualistas.
A grande perturbação espiritual individual e vigente no entorno do Espírito sofredor, juntamente com o desconhecimento da realidade espiritual, favorece a manutenção da crença no “inferno eterno”, o que dificulta, ainda mais, quais quer iniciativas de socorro por parte dos mentores.
16º e 17º) “Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências […]”.
O arrependimento é importante passo para a regeneração, mas não é suficiente para concluí-la. De qualquer maneira, quando o arrependi mento é postergado, adia-se, igualmente, todo o processo de rearmonização espiritual, a partir do reajustamento à Lei Universal.
Kardec afirma no 17º código que “[…] a expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais que lhe são consequentes […]”. Infere-se que quanto mais evoluído for o Espírito que se equivocou, maior tende a ser o incômodo moral que ele sentirá a partir da ocorrência infeliz.
O Codificador também explica que a “[…] reparação consiste em fazer o bem àqueles a quem se havia feito o mal […]” ou em cumprir deveres e esforços, mais comumente de longo prazo, em áreas nas quais falhamos.
18º, 19º e 20º) “Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam […]”.
Neste caso, a afinidade espiritual e o próprio nível de materialidade do perispírito acabam definindo as reuniões na erraticidade, as quais são justas e adequadas ao esforço evolutivo dos Espíritos. Não apresentar o nível espiritual apropriado a um determinado ambiente extrafísico seria não apresentar “a veste nupcial” da Parábola do Banquete de Núpcias (Mateus, 22:11), implicando que o Espírito menos evoluído não apenas perturbaria o ambiente como poderia não se sentir bem no respectivo meio, por não fazer jus àquela condição espiritual mais elevada.
Como o livre-arbítrio é ali cerce da Lei de Deus, a melhoria individual dependerá do esforço de cada ser, por meio do aproveitamento das experiências evolutivas. De qualquer forma, a Providência Divina sempre fornece um mentor espiritual para todo Espírito, por mais atrasado e perverso que ele seja, o que significa que há uma orientação e/ou leve sugestão para o caminho evolutivo mais interessante, a depender da nossa escolha.
21º) “A responsabilidade das faltas é toda pessoal, ninguém sofre por erros alheios, salvo se a eles deu origem […]”.
No que se refere a faltas coletivas ou alheias, a responsabilidade pode ser dividida, quando há significativa influência do coadjuvante para a ocorrência da atitude equivocada.
22º, 23º, 24º e 25º) “Conquanto infinita a diversidade de punições, algumas há inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, salvo por menores, são pouco mais ou menos idênticas”.
Espíritos materialistas, apegados à vida corporal, têm maior dificuldade no desprendimento do corpo físico, quando do falecimento orgânico (processo de morte, desencarnação e adaptação ao mundo espiritual). Também é comum acreditarem-se vivos fisicamente, depois de desencarnados, e, para os criminosos, é frequente a visão constante da(s) vítima(s), assim como da(s) respectiva(s) cena(s) do(s) crime(s). É igualmente usual a sensação de solidão, isolamento ou de ausência de entes queridos, que é acentuada pela ignorância sobre as questões espirituais.
26º, 27º e 28º) “O único meio de evitar ou atenuar as consequências futuras de uma falta, está no repará-la, desfazendo-a no presente”.
Muito provavelmente, o Espírito desencarnado faltoso, que não buscou seu próprio reajustamento durante a vida física, enfrentará situações de incômodo, nas quais os defeitos não trabalhados gerarão algum tipo de constrangimento. Orgulho, hipocrisia, sensualidade, avareza, entre outros vícios morais, tendem a gerar diversas situações de mal-estar, vergonha ou frustração, pois estarão explícitas para o próprio agente e para os respectivos acompanhantes. Os Espíritos de mesmo nível evolutivo, sobretudo os mais evoluídos, podem ler nossos pensamentos e impressões mais secretas. De fato, isto causa uma constrangedora sensação de inadequação ao portador de “vícios sociais”, os quais são costumeiramente mantidos durante toda a vida física.
Naturalmente, lembramos da passagem do Evangelho de Mateus (5:25): “Reconcilia-te sem demora com o teu adversário, enquanto estás a caminho com ele […]”.
Em uma livre interpretação, poderíamos supor que o “adversário” não representa apenas aquele a quem prejudicamos, mas também a nós mesmos, quando nos submetemos às nossas próprias paixões inferiores, sem nenhum esforço em termos de transformação moral.
29º, 30º e 31º) “[…] a misericórdia de Deus é infinita, mas não é cega […]”.
A “Lei de justiça, amor e caridade” é altamente misericordiosa, mas isso não significa que prescinda do reajustamento por meio do esforço no bem. Lembrando a questão 621 de O livro dos espíritos [Kardec, 2022a], que frisa que a Lei de Deus está inscrita na própria consciência da criatura, é lícito inferir que o próprio Espírito culpado não se sentiria em harmonia espiritual a partir, única e exclusiva mente, do seu arrependimento. O empenho na construção da virtude ainda deficiente reforça uma consolidação do cresci mento espiritual, diminuindo significativamente a probabilidade de reincidir o Espírito no mesmo tipo de erro.
32º) “Todos somos livres no trabalho do próprio progresso, e o que muito e depressa trabalha, mais cedo recebe a recompensa […]”.
Deus criou o Espírito simples e ignorante, mas sujeito à evolução. Nesta caminhada evolutiva, o Espírito tende a cometer equívocos para adquirir experiência e conhecimento, os quais podem gerar consequências mais ou menos graves, dependendo do tipo de ação e da intenção que a moveu, bem como da bagagem prévia do respectivo Espírito. O aproveitamento da experiência e o esforço evolutivo dependem de cada um, variando de acor do com o interesse e a força de vontade, o que faz com que o Espírito sempre deva a si mesmo a sua situação espiritual atual.
33º) Em que pese a diversidade de gêneros e graus de sofrimentos dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:
1. O sofrimento é inerente à imperfeição.
2. Toda imperfeição, assim como toda falta dela promanada, traz consigo o próprio castigo nas consequências naturais e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade nasce o tédio, sem que haja mister de uma condenação especial para cada falta ou indivíduo.
3. Podendo todo homem libertar-se das imperfeições por efeito da vontade, pode igual mente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade.
A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra – tal é a lei da Justiça Divina.
Considerações finais
O esforço do Espírito encarnado para o cumprimento de seu planejamento reencarnatório deve ser direcionado a dois alvos: fazer o bem e tornar-se bom e sábio ao fazer o bem. Portanto, todo empreendimento na ação da caridade deve estar focado não somente na qualidade e dimensão da obra a ser desenvolvida, mas também no crescimento espiritual que tal exercício evolutivo proporciona. A minimização dos defeitos e a maximiza ção das qualidades diminui a probabilidade de que caiamos em novos erros em uma mes ma área do comportamento humano bem como sinaliza possibilidades de inéditas rea lizações no futuro, a partir das virtudes recém-desenvolvidas.
Costuma-se afirmar que “o bem faz bem a quem o pra tica”, o que acontece, em um primeiro momento, pelo bem–estar consciencial gerado na ação benfazeja. Posteriormente, as novas conquistas íntimas desenvolvidas a partir do esforço evolutivo tornam-se pré-requisitos para alicerçar futuros projetos de mais ampla elevação espiritual.
N.A.: Palestrante, articulista e coordenador de grupos de estudo. Membro da Aliança Municipal Espírita de São João del-Rei (MG).
REFERÊNCIAS:
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 93. ed. 11. imp. (Edição Histórica). Brasília, DF: FEB, 2022a.
KARDEC, Allan. O céu e o inferno. Trad. Manuel Quintão. 61. ed. 12. imp. (Edição Histórica). Brasília, DF: FEB, 2022b.
XAVIER, Francisco Cândido. Palavras de vida eterna. Pelo Espírito Emmanuel. 2. ed. 1. imp. Brasília, DF: FEB; Uberaba, MG: CEC, 2024