Revista Reformador

A missão especial das irmãs Fox

“Qual um berço que balança,
Eis que surge uma pancada
E a mãozinha de criança
Do Invisível mostra a entrada.”¹

J. Carlos Silveira*
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Resumo

O traço distintivo da missão das irmãs Fox consistiu no aspecto comovente de seu trabalho. Acima de demonstrarem a sobrevivência da alma por meio de fenômenos incontestáveis – como faziam outros médiuns de efeitos físicos de sua época –, as medianeiras facultavam o atestado moral dessa sobrevivência, proporcionando o reencontro dos encarnados com os elos de sua cadeia afetiva, ilusoriamente perdidos. Assim, acrescendo à prova material os recursos do sentimento, as irmãs médiuns solviam todos os pontos de dúvida, tornando inabalável a convicção da vida após a morte.

Palavras-chave

Irmãs Fox; missão; prova material; sentimento; convicção.

Dizem as entidades instrutoras da Codificação Espírita que as missões dos Espíritos são de tal modo distintas que não seria possível descrevê-las.²

E Allan Kardec esclarece:

As missões dos Espíritos têm sempre por objetivo o bem. Seja como Espíritos, seja como homens, são incumbidos de auxiliar o progresso da Humanidade, dos povos ou dos indivíduos, dentro de um círculo de ideias mais ou menos amplas, mais ou menos especiais, de preparar os caminhos para certos acontecimentos e velar pela execução de determina das coisas. […] Pode-se dizer que há tantos gêneros de missões quantas as espécies de interesses a resguardar, quer no mundo físico, quer no mundo moral. […]³

É nesse vasto contexto de múltiplas especializações que assoma, em traços marcantes, a bela e nobre missão das irmãs Fox.

Se volvermos os olhos imaginativos para as lindes iniciais do Espiritualismo moderno, eis que surgirão, em nossa tela mental, duas figuras femininas, ainda nos primeiros rasgos da juvenilidade, interpelando uma inteligência invisível, de natureza assustadora. Batidas inusitadas ecoam em todas as partes da singela habitação onde residem com os pais, enquanto o autor invisível desses estranhos sons aparenta ignorar o medo e a ansiedade que provoca.

Quem são essas ousadas meninas que assim enfrentam o desconhecido? Seus nomes: Maggie e Katie Fox, de 14 e 11 anos, respectivamente. O local da aterradora experiência: um humilde barracão de Hydesville – vilarejo próximo à cidade de Rochester, no Estado de Nova Iorque, Estados Unidos. A data: 31 de março de 1848, em alvissareira madrugada.

É nesse histórico e solene momento que essas duas jovens médiuns se transformam, sem o perceberem, nas mensageiras de um mundo ignoto, inacessível à concepção da maior parte dos seres humanos.

Andrew Jackson Davis, o profeta da nova revelação, capta o insólito e empolgante even to. São suas anotações, escritas nessa mesma data:

Ao amanhecer deste dia, uma brisa morna roçou-me a face e eu ouvi uma voz, suave e forte, dizendo: “Irmão, o bom trabalho começou. Contempla a manifestação viva que sur ge”. Fiquei refletindo sobre o sentido dessas palavras.⁴

A impressionante demonstração de um incógnito prisma existencial gera perplexidade e espanto. Os amigos acorrem, curiosos, à discreta morada. Atônitos, unem-se aos membros da família no empenho de procurar pelas causas materiais daqueles sons. Tudo inútil. Os Espíritos saem vitoriosos.

As incríveis batidas, contudo, não se detêm no modesto barracão. Alcançam, pressurosas, a cidade de Rochester. Ali, com o reforço mediúnico de Leah, intensificam-se, e passam a ser conhecidas como as batidas de Rochester. Leah – irmã mais velha de Katie e Maggie –, residente na cidade, não havia participado da memorável madrugada.

Lendo o relato de Leah Fox, no capítulo 6 – A veia mediúnica de nossa família de seu livro O elo perdido no espiritualismo moderno, tomamos conhecimento de uma espécie de veia mediúnica existente na família. Sua mãe Margaret, o tio John, o irmão David, a irmã Maria, os próprios filhos e os filhos de seus irmãos, todos eles possuíam mediunidade, embora nela e nas duas irmãs mais novas essa mediunidade fosse mais intensa. Isso sem falar nos ancestrais, que tinham desenvolvidas faculdades mediúnicas.

Nada obstante, somente Leah demonstrou compreender, mais profundamente, o significado da missão que ela e suas irmãs foram chamadas a executar. Isso, no entanto, só acon teceu depois de algum tempo, porque, de início, a família manteve-se unida no senti mento de total rejeição àquela força invisível, que se intrometeu de súbito em suas pacatas existências.

Não é difícil conceber o em baraço da família Fox, obrigada a afrontar o desconcerto de uma realidade completamente fora de seus pensamentos. A imposição dos Espíritos era contínua, sem horários preestabelecidos, limitando os atos do grupo familiar. Todo tempo parecia insuficiente para aten der aos propósitos dos agentes invisíveis.

Leah dá um sentido testemunho da situação:

Permitam-me enfatizar o fato de que o sentimento de todos os membros da família […] era totalmente adverso a todas essas coisas estranhas e misteriosas. Considerávamos tais ocorrências um grande infortúnio, uma terrível aflição que se abatera sobre toda a família sem que soubéssemos o moti vo. A influência das opiniões dos vizinhos e das pessoas da região à nossa volta fortaleciam essas impressões naturais, pois o tipo de educação que tivemos nos induzia a concluir que tudo o que se passava tinha origem maligna, antinatural, desconcertante e atormentadora. Além disso, a impopularidade de toda essa coisa tendia a lançar uma sombra dolorosa sobre nós.

Resistimos e lutamos contra essa situação. Orávamos, constante e fervorosamente, para nos libertarmos de tal fardo, ainda que esses agentes invisíveis, irresistíveis, incontroláveis e incompreensíveis exercessem sobre nós um estranho fascínio, ligado ao maravilhoso dessas manifestações. Podemos dizer, entre tanto, que, se nossa vontade, desejos e orações houvessem de algum modo prevalecido, tudo isso teria sido abafado no próprio nascedouro, e o mundo, além de nossa reduzida vizinhança, nunca teria ouvido falar das batidas de Rochester e da desventurada família Fox.⁵

É, entretanto, compreensível a recusa do ser humano à mis são que lhe foi destinada. Kardec trata do assunto ao indagar sobre a consciência dos encarna dos acerca das próprias missões. E a resposta dos Espíritos Superiores é a de que, algumas vezes, isso se dá, mas, em geral, existe apenas um vago sentimento do dever a ser exercido.⁶

“[…] Suas missões só se delineiam após o nascimento e de acordo com as circunstâncias. Deus os impele ao caminho em que devam cumprir seus desígnios”.⁷

Ignorando o repúdio e a hesitação da família, os Espíritos atuam, de forma imperativa, no sentido de irradiar o foco revelador. As médiuns são obrigadas a se exporem à investigação pública. A partir daí, no entanto, entendem mais claramente a tarefa que lhes compete realizar. É ainda Leah quem o diz:

Mas o movimento não estava em nossas mãos, ou sob nosso controle. Ele tinha um objetivo, e nós, como instrumentos humildes e relutantes, éramos dominados por forças e vontades mais elevadas. Essas forças e essas vontades haviam iniciado o movimento e o dirigiam. Poderíamos até dizer que o planejaram. Passamos a compreender que todos esses eventos e incidentes, desconcertantes e angustiantes para nós, eram o nascimento de uma nova verdade, destinada a revolucionar o mundo e estabelecer a comunicação entre o aqui e o mais além, entre a Terra e a morada dos Espíritos.⁸

O processo de divulgação prossegue de modo notável. Em breve, as viagens das irmãs Fox por importantes cidades do país levam as fascinantes batidas ao conhecimento de um percentual cada vez maior do povo americano. Em fevereiro de 1852 realiza-se a primeira convenção espiritualista mundial, na cidade de Cleveland, Estado de Ohio.

Os órgãos da imprensa não resistem à popularidade das três irmãs. Se, de início, revelam tendências variadas, aos poucos aumentam sua simpatia pelas médiuns. Ao mesmo tempo, cartas de apreço e agradecimento, vindas de diversos pontos da nação, reforçam o apoio às irmãs Fox.

Vale dizer que todos os que assistiam às batidas de Rochester – excetuando-se os céticos renitentes – capitulavam ante a evidência do fenômeno. Viam-se, entre os adeptos: políticos – em especial, membros do senado e um governador –, juízes, ad vogados, médicos, jornalistas, ministros religiosos, militares, artistas e jovens estudantes. Somem-se a esse conjunto os homens e as mulheres simples do povo e ter-se-á a coletividade americana representada no quadro de sustentação à causa do Espiritualismo.

Há que incluir nesse contexto de aceitação, dando-lhe o de vido destaque, o literato Robert Dale Owen, autor de dois livros sobre o Espiritualismo moderno: Fatos na fronteira do outro mundo (1859) e Região em litígio entre este mundo e o outro (1872), este último editado pela FEB Editora.

O choque do acolhimento que, em todos os lugares, é oferecido às irmãs Fox gera a reação impetuosa do ceticismo. Diversas teorias são arquiteta das com o intuito de explicar a origem dos fenômenos, tais como a movimentação das articulações do joelho, as pressões do dedo do pé, os mecanismos escondidos debaixo das roupas: tudo é imaginado para desvendar a possível fraude, mas sem o conseguir. Em verdade, os Espíritos vencem sempre, livrando as irmãs não só das especulações de impostura, mas também das tentativas de agressão física, promovidas pelos incrédulos mais furiosos. Os resultados negativos a que chegam todos os opositores, em conjunto com as perseguições gratuitas da ignorância, intensificam, ainda mais, o reconhecimento público da honestidade e do trabalho das três irmãs.

Isso tudo posto, cabe indagar: Qual teria sido o motivo dessa veemente e célere adesão a um assunto ainda ininteligível para a maioria das criaturas humanas? Afigura-se importante responder a essa pergunta, de modo a formar um pensamento mais justo da missão das irmãs Fox nos primórdios do Espiritualismo moderno.

Quando se analisam os fatos extraordinários que irromperam em Hydesville, destaca-se, nitidamente, um ponto de rara significância: o caráter emocional das manifestações. Um homem é assassinado e denuncia o crime. A confissão do mascate que per dera dramaticamente a existência física não permite ensejo ao descaso ou ao entretenimento. O drama comove a todos os que se acercam do barracão.

Com o decorrer do tempo, perdura a natureza emotiva das mensagens. E isso porque a tônica das sessões com as irmãs Fox – se ausentes os críticos contumazes – era o reencontro dos participantes com seus familiares e amigos das esferas espirituais. Momentos de emoção indescritíveis são ali vividos, quando aqueles que se supunham mortos vêm falar aos amigos e familiares da Terra.

Em O livro dos médiuns, encontramos o devido respaldo a esse intercâmbio mais intenso com o Mundo Espiritual. Kardec interroga os mentores a propósito do assunto, levantando a questão da possibilidade que teriam os Espíritos de atenderem às evocações que lhes são dirigidas, tendo-se em conta os ambientes diferenciados de sua localização. E as Entidades elevadas explicam que os Espíritos familiares costumam buscar os Espíritos cuja presença se solicita, adicionando que o próprio fluido cósmico universal favorece, por si só, a transmissão de pensamento entre encarnados e desencarnados. Assim, o Espírito por quem se chama, em qualquer lugar onde se encontre, sente como se fosse uma comoção elétrica, que o adverte da evocação de que se faz alvo.⁹

É, certamente, o que se passava nas reuniões com as irmãs Fox: o desejo de entrar em contato com os seres ama dos dava ao pensamento uma força irresistível, que atraía os Espíritos fossem quais fossem as regiões em que estivessem. Muitas vezes, no entanto, as comunicações dos amigos e parentes eram espontâneas, visando ao despertamento de seus entes queridos ainda na existência terrena. Naturalmente os guias espirituais controlavam as sessões, com o intuito de auxiliar as médiuns em sua tarefa consoladora.

Léon Denis enaltece esses encontros íntimos com os Espíritos afeiçoados. Afirma o grande filósofo do Espiritismo:

[…] Como poderia ser condenável essa comunhão do Céu com a Terra, da qual sai a alma humana esclarecida, confortada, enlevada por todas as exortações, por todas as inspirações que lhe vêm do Alto? As práticas espíritas têm consola do, reanimado muitas criaturas combalidas sob a prova da separação; têm restituído a paz aos aflitos, provando-lhes que aqueles que julgavam perdi dos estão apenas ocultos por algum tempo a suas vistas. […] Quem haverá que, tendo perdido um ente caro, possa permanecer indiferente a esse pensamento?¹⁰

E acrescenta que não se re porta às evocações autoritárias e constrangedoras, mas à evocação que se esboça na linguagem sublimada do pensa mento.¹¹ Essa evocação é, por assim dizer, “[…] o balbuciar da alma que entra na comunhão divina e universal!”.¹²

Todas essas ponderações a respeito das atividades das irmãs Fox levam ao discerni mento de que, embora não seja possível, em princípio, desvendar inteiramente as missões dos Espíritos, em virtude de suas intrínsecas maneiras de ação – como asseveram as Entidades Superiores –, no caso particular dessas três irmãs médiuns, a característica especial da tarefa apresenta-se com tanto vigor que é forçoso distingui-la.

Constata-se, dessa forma, uma linha específica no trabalho de Leah, Maggie e Katie, quando comparado com o de outros médiuns de efeitos físicos daquela época. Além de descortinarem a sobrevivência da alma, por meio de fatos irrefutáveis, as missionárias robusteciam a prova material tocando os corações. Diluíam-se, então, todos os possíveis vestígios de dúvida ante a certeza de que os seres amados não estavam para sempre perdidos na escuridão do aniquilamento; ao contrário, retornavam, patenteando a derrota da morte.

As irmãs Fox revelaram possuir bastante sensibilidade para perceberem a fortaleza de uma ideia que se nutre da confiança nas afeições verdadeiras. Deram, assim, o máximo de si mesmas para propiciar a com preensão de que os elos dos puros afetos não se rompem, mantendo-se íntegra a sublime corrente de amor. Aliando a lógica da prova material aos valores do sentimento, as grandes missionárias possibilitaram a inquebrantável convicção de que a vida continua.

N.A.: Membro do Conselho Superior da FEB. Articulista da revista Reformador. Tradutor dos livros: A história do espiritualismo, de Arthur Conan Doyle, e O elo perdido no espiritualismo moderno, de Leah Fox – Brasília (DF).

REFERÊNCIAS:
¹ FOX, Leah. O elo perdido no espiritualismo moderno. Trad. José Carlos da Silva Silveira e Gilberto Tannús Elias. 1. ed. Brasília, DF: FEB, 2023. cap. 33 – O elo perdido (excerto do poema de mesmo nome).
² KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. q. 569.
³ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Comentário de Kardec à q. 569.
⁴ DOYLE, Conan Arthur. A história do espiritualismo: de Swedenborg ao início do século XX. Trad. José Carlos da Silva Silveira. 1. ed. Brasília, DF: FEB, 2013. cap. 3 – O profeta da Nova Revelação.
⁵ FOX, Leah. O elo perdido no espiritualismo moderno. Trad. José Carlos da Silva Silveira e Gilberto Tannús Elias. 1. ed. Brasília, DF: FEB, 2023. cap. 4 – Rochester (continuação), it. Batalha contra o sobrenatural.
⁶ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. q. 576.
⁷ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. q. 576.
⁸ FOX, Leah. O elo perdido no espiritualismo moderno. Trad. José Carlos da Silva Silveira e Gilberto Tannús Elias. 1. ed. Brasília, DF: FEB, 2023. cap. 4 – Rochester (continuação), it. Benjamin Franklin.
⁹ KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 9. imp. Brasília, DF: FEB, 2010. 2a pt., cap. 25, it. 282, perg. 5.
¹⁰ DENIS, Léon. No invisível. 26. ed. Brasília, DF: FEB, 2022. 3a pt., cap. 23 – Hipóteses e objeções.
¹¹ DENIS, Léon. No invisível. 26. ed. Brasília, DF: FEB, 2022. 3a pt., cap. 23 – Hipóteses e objeções.
¹² DENIS, Léon. No invisível. 26. ed. Brasília, DF: FEB, 2022. 3a pt., cap. 23 – Hipóteses e objeções.