Revista Reformador

Possessão

Jacobson Sant’Ana Trovão*
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Resumo

Kardec estuda detidamente o fenômeno da obsessão. Classifica, identifica graus. Incialmente, rejeita a possibilidade da possessão, optando por definir possessão como uma forma de subjugação. Na sequência de suas pesquisas se depara com um fenômeno inusitado. Reconsiderou seu posicionamento e afirmou categoricamente a existência da possessão. Mais tarde, André Luiz, pela mediunidade de Chico Xavier, profundamente integrado com o Codificador, estudando a obsessão e a possessão, confirma a ocorrência desta morbidade. O presente artigo busca revisitar, pela pesquisa literária, o caminho seguido por Kardec que o levou a reconsiderar da existência da possessão de Espíritos bons e maus.

Palavras-chave

Mediunidade; possessão; obsessão; crise; psicofonia sonambúlica.

Uma indagação comum é: existe possessão? Segundo Allan Kardec, e também segundo André Luiz, para citar apenas este elevado mentor, existe.

Pela classificação espírita, temos obsessão, que na gradação estabelecida em O livro dos médiuns, capítulo XXIII – Obsessão, se divide em simples e subjugação, e esta subdivide-se em fascinação, moral e física, e possessão que, em A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, capítulo XIV – Os fluidos, item 46, se divide conforme a natureza da entidade possuidora, ou seja, naquelas provocadas por um Espírito bom ou por um Espírito mau. Qual seria a diferença entre possessão e obsessão? A pesquisa mostra que a diferença básica está no nível de conexão psíquica estabelecida entre o desencarnado e o encarnado, devido à afinidade, gerando consequências diversas. Entendamos. Na possessão o paciente/médium está em estado sonambúlico e, na iminência da manifestação da entidade possuidora, emancipa-se, em desdobramento, permitindo que o Espírito estranho atue sobre seu corpo sem maiores obstáculos, em um acentuado grau de passividade. A ligação é sempre mental. O desencarnado poderá ser um obsessor, um Espírito inferior, não necessariamente mau, ou Espírito elevado. Caso seja um inimigo desencarnado, poderá provocar no enfermo uma convulsão, típica da epilepsia essencial, ou seja, aquela sem etiologia específica, denominada por Kardec de “crise”, expressão usada também para se referir ao que hoje se diz “transe mediúnico”. De outras vezes o Espírito perturbador poderá dominar-lhe a mente e o corpo, numa manifestação que geraria a impressão de coabitação, pois o modo de falar, gestos e movimentos próprios do desencarnado seriam reproduzidos. Ou seja, o comunicante manifesta-se com características próprias. Tal manifestação poderá ser breve ou perdurar dias, nesse caso prejudicando em muito a saúde do enfermo, enfraquecendo-o, podendo levá-lo à desencarnação. Se o comunicante for um Espírito inferior e a manifestação ocorrer em sessão mediúnica séria, poderá ser esclarecido. Não sendo, a possessão poderá ser danosa pelo desgaste físico. Caso o comunicante seja um elevado benfeitor, Espírito bom, este traria ensinamentos de grande valor, se o médium oferecer recursos para tanto. Após a manifestação pode ocorrer uma inconsciência total ou parcial do evento. André Luiz denomina os dois últimos fenômenos de psicofonia sonambúlica. Na obsessão, sempre ocasionada por Espíritos inferiores, o enfermo é consciente de que sofre a perseguição espiritual, à exceção da fascinação, na qual o doente não se aceita obsidiado. Contudo, não é comum a “crise”. Embora possa haver grande domínio mental, mormente na subjugação, o médium não permanece em desdobramento.

Para bem compreendermos tais assertivas, importa compulsarmos as obras da Codificação e a literatura espírita abalizada.

Kardec, em O livro dos espíritos, pesquisando a ocorrência da possessão, vista à época como demoníaca, obteve a seguinte resposta de elevados Espíritos:

473. Um Espírito pode tomar momentaneamente o invólucro corpóreo de uma pessoa viva, isto é, introduzir-se num corpo animado e agir no lugar do Espírito que nele se encontra encarnado?

“O Espírito não entra num corpo como entras numa casa. Identifica-se com um Espírito encarnado, cujos defeitos e qualidades sejam os mesmos que os seus, a fim de agirem conjuntamente. Mas é sempre o Espírito encarnado quem atua, conforme queira, sobre a matéria de que se acha revestido. Um Espírito não pode substituir-se ao que está encarnado, pois este terá que permanecer ligado ao seu corpo até o termo fixado para sua existência material.”

474. Se não há possessão propriamente dita, isto é, coabitação de dois Espíritos no mesmo corpo, pode a alma ficar na dependência de outro Espírito, de modo a ser por ele subjugada ou obsidiada a ponto de sua vontade vir a achar-se, de certo modo, paralisada?

“Sim, e são esses os verdadeiros possessos, mas é preciso que saibais que essa dominação jamais se dá sem a participação de quem a sofre, quer por sua fraqueza, quer por desejá-la. Muitas vezes se têm tomado por possessos alguns epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico do que de exorcismo.”

Na sua acepção vulgar, a palavra possesso supõe a existência de demônios, isto é, de uma categoria de seres de natureza má, e a coabitação de um desses seres com a alma de um indivíduo, no seu corpo. Considerando-se que, nesse sentido, não há demônios e que dois Espíritos não podem habitar simultaneamente o mesmo corpo, não há possessos segundo a ideia comumente associada a esta palavra. Pela palavra possesso deve-se entender apenas a dependência absoluta em que uma alma pode achar-se com relação a Espíritos imperfeitos que a subjuguem¹ (Grifo nosso).

Para a falange do Espírito de Verdade, na primeira obra da Codificação, possessão seria uma subjugação em grau superlativo. Não existiria “possessão demoníaca”, não poderia ser confundida com epilepsia ou com transtorno mental e seria provocada por Espíritos imperfeitos. Desse modo, não haveria coabitação ou substituição do Espírito do possuído (encarnado) pelo Espírito possuidor (desencarnado).

Mais tarde, Allan Kardec firmaria posição em O livro dos médiuns, afirmando não existir a possessão, mas tão somente a subjugação:

241. Dava-se antigamente o nome de possessão ao domínio exercido pelos Espíritos maus, quando a influência deles ia até a aberração das faculdades da vítima. A possessão seria, para nós, sinônimo de subjugação. Deixamos de adotar esse termo por dois motivos: primeiro, porque implica a crença de seres criados para o mal e perpetuamente devotados ao mal, ao passo que não há seres, por mais imperfeitos que sejam, que não possam melhorar-se; segundo, porque implica igualmente a ideia do “apoderamento” de um corpo por um Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, quando, na verdade, só existe constrangimento. A palavra subjugação exprime perfeitamente a ideia. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar do termo; há somente obsidiados, subjugados e fascinados² (Grifo nosso).

No entanto evidências vieram provocar uma reanálise da matéria. Devemos recordar que o método de trabalho dos benfeitores espirituais com Kardec dava-se pela observação do fenômeno para depois estabelecer-se a tese, que seria confirmada ou não pelos Espíritos Superiores. O Codificador era levado a observar para depois teorizar. Fundamentalmente, o método indutivo de Bacon. Na verdade, as pesquisas não estavam concluídas. Em Ciência não existe última palavra, mas conclusão de uma etapa para se avançar sobre novas descobertas. Em Espiritismo as revelações são gradativas e dependem da possibilidade de compreensão do homem.

Na Revista Espírita de dezembro de 1863 Kardec registra dois fenômenos sui generis ainda não observados por ele. Os eventos são descritos no artigo “Um caso de possessão – Senhorita Júlia”,³ do qual extraímos alguns excertos.

O primeiro:

Várias pessoas se achavam um dia na casa de uma senhora, médium sonâmbula. De repente esta assumiu atitudes francamente masculinas, mudou a voz e, dirigindo-se a um dos assistentes, exclamou: “Ah! meu caro amigo, como estou contente por te ver!” Surpresos, perguntam o que isto significa. A senhora continua: “Como! meu caro, não me reconheces? Ah! é verdade; estou coberto de lama! Sou Charles Z…” […] Com efeito, tendo-se repetido a cena vários dias seguidos, a Sra. A… de cada vez tomava as poses e maneiras habituais do Sr. Charles, apoiando-se no encosto da poltrona, cruzando as pernas, torcendo o bigode, passando os dedos pelos cabelos, de sorte que, salvo as roupas femininas, poder-se-ia crer estar diante do Sr. Charles. […]

O segundo se passou com Júlia:

Há cerca de seis meses foi acometida [Júlia] de crises de caráter muito estranho, que sempre ocorriam no estado sonambúlico, o qual se tornara, de certo modo, seu estado normal. Contorcia-se e rolava pelo chão, como a se debater sob a opressão de alguém que a quisesse estrangular e, de fato, apresentava todos os sintomas do estrangulamento. […]

[…]

Essas crises, verdadeiramente aterradoras, muitas vezes duravam horas e se repetiam várias vezes por dia. Quando acabavam por vencer Fredegunda, esta caía num estado de prostração e de acabrunhamento de que só saía pouco a pouco, mas que lhe deixava uma grande fraqueza e dificuldade de falar. Sua saúde estava profundamente alterada; nada podia comer e por vezes ficava oito dias sem alimentar-se. […]

[…]

Eis o que testemunhamos numa dessas lutas terríveis, que não durou menos de duas horas, quando pudemos observar o fenômeno nos mínimos detalhes e no qual reconhecemos de imediato uma completa analogia com os dos possessos de Morzine.

Foi em decorrência de tais observações que Kardec concluiu existir a possessão, tendo afirmado:

Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar esta asserção, posta de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, embora parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante. […] (Grifo nosso).

Diante do estudo dos fenômenos naturais, nenhuma posição pode ser absoluta. Existe um desconhecido que supera em muito o conhecido. O conhecimento evoluiu. Os Espíritos que guiavam Kardec fizeram-no observar um inusitado fenômeno relacionado ao domínio mental de um desencarnado sobre um encarnado, domínio esse variável de pessoa a pessoa, em graus diversos. Kardec, de mente lúcida, acessível aos ensinos dos Espíritos ampliou o entendimento sobre a obsessão, levando-o a admitir a possessão.

Posteriormente, em A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, de 1868, o Codificador traria um maior detalhamento sobre o tema:

47. De posse momentânea do corpo do encarnado, o Espírito se serve dele como se fora seu próprio corpo; fala por sua boca, vê pelos seus olhos, age com seus braços, como o faria se estivesse vivo. Não é como na mediunidade falante, em que o Espírito encarnado fala transmitindo o pensamento de um desencarnado; no caso da possessão, é o desencarnado que fala e atua, de modo que, quem o haja conhecido em vida, reconhecerá sua linguagem, sua voz, os gestos e até a expressão da fisionomia.

48. Na obsessão há sempre um Espírito malfeitor. Na possessão pode tratar-se de um Espírito bom que queira falar e que, para causar maior impressão nos ouvintes, toma do corpo de um encarnado, que voluntariamente lho empresta, como emprestaria sua roupa a outro encarnado. Isso é feito sem qualquer perturbação ou mal- -estar, durante o tempo em que o Espírito encarnado se acha em liberdade, como no estado de emancipação, conservando- -se este último ao lado do seu substituto para ouvi-lo.

Quando o Espírito possessor é mau, as coisas se passam de outro modo. Ele não toma moderadamente o corpo do encarnado, antes se apodera dele, se este, que é o titular, não possui bastante força moral para lhe resistir. E o faz por maldade para com este, a quem tortura e martiriza de todas as formas, indo ao extremo de tentar exterminá-lo, seja por estrangulação, seja atirando-o ao fogo ou a outros lugares perigosos. […]⁴ (Grifo nosso).

Como visto, Kardec considerava a possibilidade de possessão efetivada por um bom Espírito e por um mau Espírito. Inclusive, identificava diferenças entre a chamada mediunidade falante, hoje psicofonia consciente, e a possessão.

André Luiz, ao dissertar sobre o transe psicofônico, indica o centro de força coronário como a região que permite a conexão mental entre o médium e o comunicante espiritual. Este agiria sobre a glândula pineal, seguindo sobre o hipotálamo, sistema límbico, e após o pensamento captado se dirigiria por circuito neuronal específico até o córtex frontal, tornando possível o reconhecimento do pensamento captado. Tal ação possibilitaria ao desencarnado interferir no funcionamento de todos os órgãos do corpo do encarnado. Com o domínio de tais sistemas, caso o psicofônico ofereça grande passividade, característica dos médiuns sonâmbulos, o domínio da mente e do corpo serão plenos. Isso explicaria a mudança de personalidade identificada por Kardec ao observar a manifestação do Espírito Charles acima referido. É a esse estado que se dá o nome de possessão.

[…] os verdugos comumente senhoreiam os neurônios do hipotálamo, acentuando a própria dominação sobre o feixe amielínico que o liga ao córtex frontal, controlando as estações sensíveis do centro coronário que aí se fixam para o governo das excitações, e produzem nas suas vítimas, quando contrariados em seus desígnios, inibições de funções viscerais diversas, mediante influência mecânica sobre o simpático e o parassimpático. […]⁵

Em lúcida interpretação do pensamento do Codificador, André Luiz demostra que a possessão do “bom Espírito” ou Espírito inferior dá-se pela nominada psicofonia sonambúlica ou psicofonia inconsciente, estado no qual o médium sonâmbulo permanece em grande passividade. Ao final, ocorre a amnésia pós-transe. Descrevendo o fenômeno, diz o mentor André Luiz:

A médium desvencilhou-se do corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e conduziu consigo a aura brilhante de que se coroava.

[…]

Auxiliado pelo guardião que o trazia, sentou-se com dificuldade, afigurando-se-me intensivamente ligado ao cérebro mediúnico.

[…]

– Celina – explicou bondoso – é sonâmbula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se processa sem necessidade de ligação da corrente nervosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o ocupa. […] não tem qualquer dificuldade para desligar-se de maneira automática do campo sensório, perdendo provisoriamente o contato com os centros motores da vida cerebral. Sua posição medianímica é de extrema passividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si na exteriorização da própria personalidade. […]

[…]

– Embora seja preciosa auxiliar, como vemos, não se lembrará dona Celina das palavras que o visitante pronuncia por seu intermédio?

– Se quiser, poderá recordá-las com esforço, mas, na situação em que se reconhece, não vê qualquer vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.

[…]

– Sim, Hilário, você tem razão. O sonambulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. A psicofonia inconsciente, naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria defesa, pode levar à possessão, sempre nociva, e que, por isso, apenas se evidencia integral nos obsessos que se renderam às forças vampirizantes.⁶

O sonâmbulo, quando sintonizado com ferrenho obsessor que o persegue, pode sofrer a crise no fenômeno da epilepsia essencial, conquanto, em O livro dos espíritos, Kardec tenha anotado: “[…] Muitas vezes se têm tomado por possessos alguns epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico do que de exorcismo”⁷ ; grifo nosso. A expressão aqui deve ser tomada genericamente. Atualmente, observando-se as causas da epilepsia, vamos identificar aquelas decorrentes de anomalias anatômicas ou fisiológicas, como tumores ou substâncias que alteram o funcionamento do cérebro, que não podem, obviamente ser impostas à ação de desencarnados. Mas, a epilepsia essencial, sem origem especificada, segundo André Luiz, decorre da ação possessiva do desencarnado.

Permanecia o cavalheiro plenamente ligado ao algoz que o tomara de inopino. O córtex cerebral apresentava-se envolvido de escura massa fluídica. Reconhecíamos no moço incapacidade de qualquer domínio sobre si mesmo.

Acariciando-lhe a fronte suarenta, Áulus informou compadecido:

– É a possessão completa ou a epilepsia essencial.

– Nosso amigo está inconsciente? – aventurou Hilário, entre a curiosidade e o respeito.

– Sim, considerado como enfermo terrestre, está no momento sem recursos de ligação com o cérebro carnal. Todas as células do córtex sofrem o bombardeio de emissões magnéticas de natureza tóxica. Os centros motores estão desorganizados. Todo o cerebelo está empastado de fluidos deletérios. As vias do equilíbrio aparecem completamente perturbadas. Pedro temporariamente não dispõe de controle para governar-se, nem de memória comum para marcar a inquietante ocorrência de que é protagonista. […]⁸

O Espiritismo é uma doutrina progressista, afirmara Kardec; deverá seguir com os avanços das leis que regem as ciências e a comprovação dos fatos. Isso ocorreu com o Codificador ao observar o fenômeno que desafiava o entendimento das relações entre a dimensão material e a espiritual. Por isso ele admite rever sua posição anterior e assinalar a possiblidade da possessão. O enfermo, quando possuído por um obsessor, ou o médium em atividade no transe psicofônico sonambúlico, pode sofrer uma real alteração de personalidade. A impressão é de uma coabitação de duas almas no mesmo corpo. Mas isso é impossível. No caso, dois perispíritos permanecem de tal modo ligados, devido a afinidade entre encarnado e desencarnado que, aos olhos de André Luiz, se assemelham a duas plantas no mesmo vaso, momentaneamente, ou seja, durante o transe.

O socorro ao possesso é o mesmo aplicado ao obsediado, ou seja, passes, preces, água fluidificada, atendimento ao desencarnado em sessão mediúnica e, muito importante ainda, o esforço do encarnado em sua melhoria moral.

Um tema de estudo dos grupos mediúnicos deveria ser o da obsessão e naturalmente da desobsessão, aprimorando suas práticas. Afinal, são os grupos mediúnicos sérios que apresentam estrutura para melhor auxiliar encarnados e desencarnados sofredores.